Ao completar um ano no cargo, o reitor da Unicamp, Antonio José de Almeida Meirelles, propõe o diálogo com diferentes segmentos da comunidade interna e externa e garante que trabalhará para que a Universidade abra-se cada vez mais à sociedade. Segundo ele, é preciso ousar.
“Temos de nos abrir a relações mais perenes e mais próximas com o conjunto da sociedade. E precisamos fazer isso de forma ecumênica”, disse.
Para o reitor, a Universidade precisa ampliar os pontos de contato com os movimentos sociais mas também com as empresas e com o universo da política. “Não devemos ter medo dessa abertura. Podemos afirmar nossos valores, mesmo dialogando com visões diferentes”.
Meirelles acredita que a Unicamp, assim como as universidades em geral, deve aspirar a um papel de protagonismo nas discussões nacionais. “Temos de ser um lugar de reflexão sobre os problemas do Brasil”, avalia.
Nesta entrevista ao Portal da Unicamp, ele criticou duramente manifestações racistas, xenofóbicas ou de intolerância. Lembrou, ainda, que a Unicamp tem estado na vanguarda do desenvolvimento científico e tecnológico voltado para a sustentabilidade.
O reitor fez também um balanço positivo da retomada das atividades presenciais após a pandemia e vê o futuro da Universidade com esperança.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
A Unicamp elaborou uma Carta pela Ciência e Educação, a ser entregue a agentes políticos, em que se enfatiza o papel estratégico das universidades e se coloca à disposição para cooperar na construção da nação brasileira. Qual poderia ser o papel da Unicamp nesse processo?
Meirelles – A Unicamp tem uma tradição de formulação e influência sobre políticas públicas nas mais diversas áreas. Em algumas delas, com envolvimento direto da pesquisa em ciência e tecnologia; em outras, no próprio estabelecimento de políticas de Estado.
Podemos lembrar nosso papel na área de políticas econômicas, por exemplo, ou da política educacional. A Unicamp foi importante na questão da merenda escolar; teve uma participação ativa no programa Comunidade Solidária, no Fome Zero e, depois, na formulação do Bolsa Família. Esteve ainda na origem do programa nacional do álcool e da implantação do biodiesel no Brasil
Essa é uma tradição que pode e deve ser retomada. A Unicamp deve ser um lugar de reflexão sobre os problemas do Brasil.
Além de abordar temas como o do financiamento, de forma a garantir a autonomia acadêmica e administrativa das universidades, a Carta coloca questões que hoje são relevantes para a sociedade brasileira como um todo, como a inclusão de egressos de escolas públicas e de estudantes de diferentes etnias, como pretos, pardos e indígenas. Essa é uma questão que o Brasil está enfrentando, mas apenas há pouco tempo. A Unicamp avançou na inclusão, mas eu diria que o maior desafio hoje é a questão da permanência dos que foram incluídos.
Falamos na Carta também da questão da saúde pública. Do papel, evidenciado dramaticamente durante a pandemia, dos hospitais universitários e de sua relação com o SUS. Essa estrutura de atendimento precisa ter um melhor financiamento da parte do Estado.
Assinalaria, ainda, algo que hoje parece ser crucial, o chamado trinômio ou tripé de sustentabilidade. Ele tem um ponto de apoio na sustentabilidade ambiental; outro, na social, no sentido de justiça e inclusão; o terceiro pilar é o da econômica, isto é, a questão da governança.
Esses três pilares estão muito bem representados na agenda 2030 e nos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Em nossa avaliação, essas preocupações podem favorecer um espírito de cooperação no conjunto da comunidade brasileira.
Como o sr. avalia a receptividade dos governos a esse tipo de pauta?
Percebo uma receptividade muito grande da parte da comunidade acadêmica. Sinto também um grande impacto junto a entidades da sociedade civil, que têm uma perspectiva parecida, e em uma parte significativa do mundo corporativo.
Essas reivindicações são bem acolhidas pelo governo de São Paulo, mas a interlocução com o governo federal é mais difícil. Espero que isso se transforme. Espero que essa manifestação da comunidade acadêmica, por meio da Carta, ajude a gerar um espírito mais colaborativo.
Conhecemos as polêmicas em torno da vacinação, por exemplo. Ela é essencial do ponto de vista da comunidade acadêmica, porque está baseada em conhecimento científico. E não há consenso possível entre a atividade científica e o espírito de negação.
A atividade científica não está baseada em achismos, mas em evidências, em levantamentos, em estudos formalmente conduzidos. Esse é um ponto em que não temos condições de recuar.
Como atuar em um ambiente desfavorável, como o que existe hoje?
Temos de atuar a partir de todas as diferenças que existem na Universidade. É deste caldeirão, desta concordância e tensão simultâneas que se constrói uma universidade. Ela tem lá suas particularidades, mas valoriza a democracia e a inclusão.
No entanto, temos de ousar mais. Temos de nos dispor a estabelecer relações mais perenes e mais próximas frente ao conjunto da sociedade. E precisamos fazer isso de forma ecumênica.
Quero dizer com isso que temos de nos aproximar dos movimentos sociais, mas também das grandes empresas. E temos de conversar com o universo da política.
Defender a universidade pública nos obriga a dialogar com o conjunto da sociedade. Não podemos ter medo disso. Podemos afirmar nossos valores, mesmo entre visões diferentes.
O ranking Impacts, da consultoria britânica Times Higher Education (THE) classificou a Unicamp entre as 200 universidades mais comprometidas com os 17 ODS da ONU. Que avaliação o sr. faz sobre esse ranking e qual é sua expectativa para os próximos anos?
Acredito que se nossa realidade estivesse refletida de uma forma mais fidedigna, teríamos uma classificação ainda melhor. Mas foi uma classificação muito boa, que reconhece nossa dedicação a pesquisas associadas à sustentabilidade e também compreende que estamos em um processo acelerado de execução dos princípios da sustentabilidade em nossos próprios campi.
Temos uma história de envolvimento em tudo o que é renovável. A energia renovável, por exemplo, encontra vários pontos de suporte na Unicamp. Diria que poucas universidades contribuem como a Unicamp para o desenvolvimento científico e tecnológico voltado para a sustentabilidade.
Em um movimento inédito, a Unicamp instalou este ano o programa de Refúgio Acadêmico. Qual a importância desse tipo de iniciativa?
Estudei em uma universidade, a Unicamp do final da década de 1970 e início da de 1980, que tinha muitos professores estrangeiros, e isso foi importante para a minha formação. Na própria Engenharia de Alimentos, tínhamos vários professores vindos de países da América Latina e de outras regiões. Boa parte eram refugiados, que atravessaram situações difíceis sob regimes autoritários.
A Unicamp foi responsável também por trazer de volta professores que tiveram de sair do Brasil em razão do regime militar, e isso já na década de 1970, um período ainda fechado.
Portanto, é uma vocação que faz parte da nossa história. A iniciativa do refúgio tem vantagens para os dois lados. O profissional ganha uma rota de escape de uma situação difícil, mas a instituição também ganha com seus conhecimentos, seus saberes, sua cultura. A Universidade, na verdade, é um local que precisa de diversidade.
Como o sr. avalia o recrudescimento de manifestações de xenofobia, racismo, intolerância religiosa que se verifica no Brasil e em grande parte do mundo?
Essas manifestações que ocorrem no país, no mundo e às vezes aqui mesmo, nas cercanias dos nossos campi, são contrárias ao avanço civilizatório. Elas criam fronteiras e ignoram a humanidade das diferentes pessoas. São típicas de quem não consegue conviver com a diversidade.
Trata-se de algo muito negativo, e que infelizmente caracteriza este momento que vivemos. Mas tenho esperança que elas não se viabilizarão. Tudo isso nos causa preocupação, mas acreditamos que seja algo restrito a um grupo de pessoas.
Defendemos a construção de pontes, a busca do diálogo. Tenho confiança de que o espírito que vai predominar em nossa sociedade é o espírito agregador, que certamente é o da universidade. Um espírito generoso, que fortaleça o entendimento entre as diferentes opções religiosas, políticas e de origem. Um espírito inclusivo.
A Unicamp executa programas de abrangência nacional e internacional. Mas como se dá a relação da Universidade com a região de Campinas, a que está mais fortemente ligada?
Darei dois exemplos do que a Unicamp tem feito na região de Campinas, e que podem ter repercussão em outras partes do país.
Por meio do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo), coordenado pelo professor José Marcos Pinto da Cunha do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), a Unicamp está hoje envolvida no Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) da Região Metropolitana de Campinas (RMC). Junto com o Conselho da RMC, que abrange 20 cidades, a Unicamp está organizando o processo de audiências para o desenvolvimento desse plano da nossa região.
Um outro exemplo de parceria em políticas públicas é um radar meteorológico para monitoramento climático, que deverá contribuir para o desenvolvimento do setor agrícola na região. Estamos muito próximos de viabilizar uma cooperação com a Agência Metropolitana de Campinas (Agemcamp) para a instalação e a operação do radar. A Agemcamp traria os recursos para a aquisição do equipamento, que seria operado pela Unicamp.
A Unicamp pretende retomar as obras do Teatro Laboratório do Instituto de Artes (IA). Já foram reservados recursos para a obra?
Já existe a verba. Ela está no orçamento para execução dos projetos complementares, uma vez que a estrutura do teatro está pronta, mas faltam projetos elétricos, hidráulicos, enfim, todo o detalhamento da ocupação interna. Mas como o empreendimento envolve grande volume de recursos, tivemos uma outra iniciativa, que foi criar um Plano Plurianual de Investimentos (PPI). Qual é a ideia? Não conseguimos executar uma obra dessas no prazo de um ano. Então, precisamos prever, no orçamento, recursos a serem gastos em um período maior, de dois a quatro anos.
Mas também há possibilidade de mobilizar recursos da Lei de Incentivo, não?
Neste caso, ocorreram dois eventos felizes. Um foi a maior disponibilidade do orçamento, que nos permitiu tomar essa decisão. A alocação de recursos está feita e, se não tivermos fonte extra, a construção do teatro será concluída com recursos da própria Universidade.
Mas, em uma iniciativa paralela, a direção do IA buscou recursos da Lei de Incentivo à Cultura e conseguiu a habilitação, com desconto completo.
Nosso desafio, agora, é promover uma campanha que motive a comunidade interessada em artes, dentro e fora da Unicamp, como as próprias empresas que investem em atividades culturais.
Passados quase dois meses, qual a sua avaliação da retomada das atividades presenciais na Universidade?
Primeiramente, uma avaliação pessoal. Fico muito feliz de andar por aí e ver a Universidade viva. Tomamos posse na terceira semana de abril do ano passado e era realmente muito triste ver os campi vazios. Uma universidade sem a presença de seus funcionários, professores, pesquisadores e, principalmente, de seus alunos, é um ambiente triste.
Em nossa avaliação, o retorno foi muito positivo e bem realizado. Trabalhamos muito para que ele fosse seguro. Hoje, temos praticamente todas as atividades ocorrendo na forma presencial.
Que balanço o sr. faz do seu primeiro ano à frente da Unicamp?
Vejo o futuro com muita esperança, porque já conseguimos resolver alguns nós. Por exemplo, aqueles relativos à retomada, que foi uma tarefa muito difícil. Conseguimos, a partir de setembro do ano passado, iniciar o retorno progressivo de docentes e funcionários à Universidade. Retomamos agora, com bastante êxito, as atividades presenciais de ensino.
Tivemos importantes conquistas também internamente, em termos de carreira. Recuperamos a progressão de docentes, pesquisadores e funcionários e a possibilidade de oferecer reajuste salarial, o que melhorou a renda das pessoas. Essas coisas contribuíram para criar um clima favorável.
Sinto que há boas perspectivas para o futuro em termos de realizações. Ainda existem alguns nós. Por exemplo, as dificuldades próprias de um organismo público para a realização de obras. Nosso desafio é descobrir como melhorar os processos, aplicar bem os recursos orçamentários e renovar a Universidade.
Precisamos também pensar em uma reposição de nossos quadros. Tivemos perdas de docentes e funcionários. Estamos buscando soluções, sempre com cautela para não comprometer o orçamento.
Como tem sido a experiência no cargo?
Continuo animado. É um desafio positivo, uma experiência interessante. Trata-se de uma comunidade complexa, com uma grande variedade de temas e de perspectivas. Quero enfrentar o desafio de unir a comunidade em torno de ideias e acredito que isso seja possível.
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Originalmente publicado no Portal da Unicamp